A parte incompreensível da vida

Contos

Os ponteiros do relógio da parede da cozinha marcavam três e quarenta da manhã e lá estava Ana esquentando no micro-ondas um copo de café que havia feito na tarde do dia anterior. Era sábado, mas ela não conseguia pregar o olho desde que soube que Seu Josias, vizinho do apartamento ao lado, havia se matado.

Ana estava num estado inquieto já há quase uma semana e olheiras roxas e grandes já se penduravam feiamente abaixo de seus olhos. Ela sabia que tomar café não era o melhor remédio para a insônia, mas era melhorar virar a noite acordada e trabalhando do que ficar deitada na cama sem conseguir dormir, pensando no pobre senhor.

Ela pegou o café e deu um gole, o gosto era ruim, mas provavelmente iria conseguir cumprir o papel de mantê-la acordada. Resolveu pegar o notebook e sentar-se na varanda, mas o vento frio de agosto a fez mudar rapidamente de ideia. Por fim se sentou no sofá da sala de estar. O clima frio e seco apenas colaborava em deixá-la ainda mais triste do que já estava.

Ana era escritora de livros de autoajuda, mas não era exatamente famosa e nem sempre colocava em pratica o que escrevia. Fazia aquilo porque era o que as editoras preferiam publicar, ao invés dos seus romances “água com açúcar”, como ela mesma já ouvira antes. E, bem, desde criança ela sonhava em ser escritora. Na verdade, ela não conseguia se ver fazendo outra coisa, porque era apenas aquilo que tinha a oferecer para o mundo.

Porém, não conseguia parar de pensar na hipótese de que se Seu Josias tivesse lido algum livro seu, talvez teria se matado do mesmo jeito. Ana sempre achou que seus livros poderiam ajudar as pessoas, mas depois do episódio, pela primeira vez percebeu que suas obras eram uma merda. Provavelmente não ajudariam nem uma pré-adolescente na primeira TPM.

Ela olhou para o ponteiro dentro do documento em branco do Word, desanimada. Este seria um novo capítulo, mas Ana não era capaz de digitar uma única frase sem apagá-la logo em seguida. Nenhuma palavra de encorajamento vinha à sua cabeça.

Seu Josias tinha lá para seus quase setenta anos e era aposentado. Sua mulher havia o abandonado muito antes de se mudar para o condomínio e seu único filho nunca o visitou, mas Seu Josias sempre lhe enviava cartas. Ainda assim, o senhor sempre era simpático com Ana quando a via no corredor. Às vezes a convidava para tomar um chá em sua casa e conversar sobre a vida. Naquela época, ela nem ao menos cogitou que pudesse haver algo de errado. Ana teve a infelicidade de ouvir o momento em que Seu Josias acabou com tudo e o som a assombraria pelo resto da vida, ela tinha certeza.

No dia em questão, Ana estava conversando com a mãe no telefone quando ouviu um barulho alto vindo de trás da parede que dava para o outro apartamento, como um estampido, mas não imaginava o que poderia ser. Com medo de ser algum ladrão invadindo o apartamento do vizinho, ela chamou a polícia. Os policiais derrubaram a porta da casa de Seu Josias e depois vieram lhe contar o que havia acontecido. Quando foram buscar o corpo, ninguém da família do senhor apareceu.

“Nascemos sozinhos, morremos sozinhos” foi tudo o que ela conseguiu digitar. O ponteiro piscando conseguia ser ameaçador, como se desafiasse Ana a escrever algo sobre autoajuda depois de tudo. Ela tomou mais café, mas conseguia sentir o cansaço até nas pontas dos dedos. Sentia-se exausta, mas não conseguiria dormir mesmo se tentasse.

Ana releu a frase que havia acabado de escrever, com a certeza de que aquilo não deveria estar em um livro motivacional. Passou a mão tremula pelo cabelo oleoso, fechou a tampa do notebook e o largou em cima da mesinha de centro. Outro gole no café, que já começava a esfriar e ficar ainda mais intragável.

O prazo que a editora tinha lhe dado para terminar o livro a cada dia se aproximava e tudo que escrevia era supérfluo e completamente insensível. Agora, mais do que nunca, ela era capaz de perceber isso. Quis deletar tudo e escrever o  livro novamente. Um livro que talvez teria ajudado Seu Josias se ele ainda tivesse a oportunidade lê-lo. Pensou também em escrever um outro livro, dessa vez sobre a importância da família, para que o filho dele lesse e se sentisse um lixo. Também quis escrever sobre como coisas horríveis assim podem acontecer e nem mesmo uma merda de escritora de livros de autoajuda perceberia.

Ana levantou e jogou com raiva o café ruim na pia da cozinha. Levou as mãos até o rosto, sem saber o que mais faria naquele resto de noite. Dando-se por vencida, foi assistir televisão a cabo e se permitiu, finalmente, chorar. Mas não por Seu Josias, ou por seus livros, chorou porque percebeu que não sabia nada sobre a vida.

7 thoughts on “A parte incompreensível da vida

  1. É interessante a personagem e sua história real. Na verdade é bem isso mesmo, nascemos e vamos sozinhos, assim também são as tentativas que temos uns para com os outros de ajudar de se importar e dar sentido a nossa vida. A vida em si é um grande mistério essa é a verdade. Vivemo-la e choremos pois o choro é o banho da alma. 🙂

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  2. Quão real é esse conto! A frustração de não conseguir terminar um projeto, as dúvidas se aquilo ajudará alguém e o fato de nascermos e morrermos sozinhos, são realidades da vida.

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